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Tuesday, November 17, 2009

Crack-Anne



Ela morava em um quarto onde não cabia um homem adulto deitado no chão. Tinha TV a cabo, forno de microondas, geladeira, fogão, e uma filha, a Anne. Se você quisesse encontrá-la bastava ir até a Av. Atlântica, que com certeza ela estaria lá. Bem, ela não era capaz de ficar com uma pessoa só, por isso freqüentava assiduamente a Av. Atlântica. O horário em que você poderia encontrá-la, por volta das 00h00min horas. Provavelmente ela estaria rodeada de amigas, e de homens interessados em algum tipo de diversão.
1,2,3, dezenas de ligações. Os clientes pagavam o táxi até algum hotel de luxo, e lá tinham uma noite de prazer inesquecível.
A Júlia era realmente linda. A Júlia é destas garotas que sempre tiveram consciência de que era pobre. E a vida tinha lhe oferecido apenas duas opções: Ou sofreria como um cão abandonado, ou sairia por aí se divertindo dentro do possível e comendo pessoas. Nada de canibalismo aqui: estou falando de sexo. Sentir algo que não seja dor. É como se a sua frente ela conseguisse ver uma cidade inteira com as pernas abertas. E o fato de às vezes não ter um puto no bolso não fazia diferença, ela sempre dava um jeito de arrumar dinheiro.
Give me a Love that won´t give me troubles.
Certo dia ela resolveu fazer uma lista das coisas que ela jamais deveria fazer: 1. Jamais voltar para Curitiba. Voltar para aquela cidade poderia lhe trazer um sofrimento interminável. Iria se lembrar que poderia andar de mãos dadas com a Anne, iria querer acordar abraçada à sua filha, sentir o cheiro dela. Iria se lembrar que amor dói que amor sempre vai doer. Que amor mata!
Acordou e foi tomar café. Não, café é jeito de falar. Na verdade era leite em pó com Nescau. Ela não tomava leite, tinha nojo. E então se lembrou da Anne, se lembrou que a Anne reclamava quando ela sacudia a pipoca, e o queijo ia para o fundo, e que Anne sempre ria quando ela usava tomara que caia, dizia ser a peça mais engraçada do seu guarda roupa.
A Júlia chorou. Chorou muito.
It kills her. Just because it can´t be erased.
Quando ela andava pelo Rio, uma maravilhosa poluição visual. Pedras e favelas, e pessoas brotando de todos os lados. Pessoas feias, e lindas. Parte da paisagem.
A Júlia era como o Rio de Janeiro. Uma mulata gostosa que fode tão bem a ponto de deixar os homens todos loucos, e eles largarem suas mulheres e filhos, e empregos, e passarem a vida tomando caipirinha e indo a praia todas as manhãs.

“A land Love you give me I can´t take you.
Anne, you fill me up so much when you touch me.
But I can´t stay here, I have to go to my space.
People talk to me.
Try to play me a tune.
Sell me cocaine.
But I can´t take you, I have to go to my space.”
Era uma festa estranha, com pessoas que ela desconhecia. Então lhe ofereceram cocaína. Depois de duas semanas Júlia estava apaixonada por crack, irremediável e irresistivelmente. Flertaram loucamente. Seu sensor de auto-sabotagem apitou, e ela não se importou, estragou tudo. Que bela trepada, o mundo girando, as ondas batendo na beira da praia.
Dezessete anos, seu primeiro amor, aquele que sempre dói muito, e que a fez chorar e emagrecer dez quilos, e perder a dignidade, e ficar magrinha e doente, e sofrendo debaixo da mesa do seu quarto.
Enquanto tocava Cazuza no rádio de um bar decadente, Júlia trepava loucamente, ela e seu mais novo amante, o crack; viciante, demoníaca, a flor da montanha, que tinha gosto de metanol, com borracha queimada, e asfalto e óleo. O aviso NÃO USE TUDO, veio mais tarde, gritado em uníssono por Anne, que suplicava a mãe que não saísse até ao central park a procura do seu amante. E ela no banco da praça, chorando, e escondendo a cara no colo da filha, porque sabia que tinha estragado tudo, e que não havia volta, era tarde demais, ela era uma idiota, e tinha a mais plena consciência disso.
Anne a amava em uma contradição de amor aos gritos e tapas que não podem ser dados em um moribundo. O que a Anne queria era que o coração de Júlia não parasse, mesmo quando todos os seus órgãos estivessem podres, o seu coração ainda iria bater, por que Anne desejava isso. Para ela o coração da sua mãe deveria se recusar a parar, por que era ali que estava toda a sua vida. Coração, mesmo com suas mucosas nasais transformadas em carne de sol.
Numa noite estranha de Júlio, quando em Curitiba fazia um frio de doer os ossos, Júlia recebe um telefonema de uma garota que trabalhava em uma revista e que tinha visto em um jornal um anúncio de adoção. Muitos cigarros, mãos suando, o coração batia incansavelmente. A moça disse que queria conhecer a criança, queria agendar uma visita. Júlia pronunciou palavras sem sentido, estava nervosa, se enrolou, mas disse que a moça poderia passar às 17h00min da tarde em sua casa.
Quando a moça chegou, a sua vontade era de mandar aquele seu ar blasé no cú, mas se conteve. Ela sabia que não era exatamente o que a Anne precisava.
Anne acabou indo morar em São Paulo. Em São Paulo não tem céu. Mas quando ela vai pra o Rio, olha pra o céu e vê estrelinhas, e a lua sorrindo. Anne sabe que uma daquelas estrelinhas é a Júlia, e que ela está sorrindo pra ela.

1 comment:

Lorrayne Toebe said...

Uma sucessão infinita de cenas se passou pela cabeça ao ler teu conto, incrível como descreve cenas minunciosamente, parabéns.