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Tuesday, October 30, 2007

Postagem sem título

Ao ler os diários de Anais Nin, uma súbita e prolongada idéia riscou minha mente, como um raio a solidificar a possível aglutinação de sensações e impressões esparsas, sentimentos não cogniscíveis. Tudo ao inteiro dispor de algumas linhas paraleleas: As escrituras íntimas da mente, as palavras de sangue a brotarem de todos os poros do meu corpo insólito, partos poéticos em necessidade ambígua, transformando - se em fetos, balas de festim diabólicas, olhos demôniacos que luzem em paisagens gélidas e opacas.
O dissabor de um pequeno desgosto na primeira infância. Uma sensibilidade de obscura pureza. Adolescência embrionária , que mesmo em um gesto não volitivo, enaltece o gosto pela arte.
Resolvo escrever um diário. Hoje, vinte e sete de outubro de 2007, suas primeiras linhas são cravadas a " golpes de martelo".
Entranhados a areia movediça, nas águas turvas, nos círculos concêntricos do oceano, mausoléus de homens e criaturas sobrenaturais. Um paraíso artificial em sono eterno. O que abalaria a sua eternidade? Apenas o vento, seu som sombrio, nos enlaça ao mistério da natureza, a natureza e suas arestas retilínias, seu centro caótico. O abismo do mundo.
Á cada homem, uma história singular. Passado e presente refletidos como um embrolho oblíquo, onde nenhuma forma foto - graficamente fixa padroniza o espírito.
A escolha única. Cores confusas. A fotografia na parede. Dois rostos imóveis em um quadrado cinza. Passado, presente, e futuro numa única representação simbólica do anfi - teatro de duas existências amortecidas, suscetíveis a exigência onipotente do tempo.
Delírios;
O que nos fascina na arte não é apenas o seu conteúdo temático, as técnicas apuradas ,ou não , que permitiram a sua arquitetura. Mas as impressões atmosférias que esta mesma obra de arte nos suscita. As ondas de luz e dor abatidas sobre a alma, quando, num gesto involuntário, por mero escrutínio instintivo, nos dispomos sobre ela. Êxtase e razão. A consciência explodindo em paroxismos.
Mas, e o meu diário? O que , concretamente, pode ser descrito nestas linhas? Pode ser escrito deste dia?
Sonhos. Leituras intermináveis. Hoje, Crime e Castigo, de Dostoiévski. Em uma só semana Baudelaire, e alguns contos de Woody Allen ( seu desespero cômico, seu sarcamos enxuto sobre as ditas questões sérias, como a psicanálise, ou mesmo filosofias que tentam atribuir sentido ao homem, aliviam a angústia sentida á alguns dias ao debruçar - me sobre um outro livro, " Quando Nietzche chorou". Alguns amigos, suas conversas cotidianas. Pólvora a desfazer - se, desnaturar - se, derreter -se.
Anoitece. Volto com um entusiasmo infantil ás primeiras páginas do demônio russo. Os vestígios da supertição ainda permanecem no meu espírito. Raskolnikov , eu te odeio, odeio a sua tragicidade, odeio amar - te. Nele, no estudante fatigado pelo sofrimento, resignado diante do amor pela jovem Soniechka, a dialética finalmente cedera lugar a vida, uma renovação da alma inicia -se.
Á nós, humanos, resta - nos apenas a entrega ao amor, ou a resignação ao mal?
Delírios;
Quero a gramática pura. Não quero antíteses ou metáforas. Quero linhas claras, limpas . Um proeminente " não" ao pensamento desordenado, ao caos em anseio por ordem. Quero a métrica precisa do parnasiano.
Escreverei um roteiro. Com tipos humanos, anseios humanos, com um início e um desfecho. Mas preciso delimitar um tema. Formas prontas? Não existe fórmula para o pensamento! As palavras se dissolvem no incorpóreo ar, nele, assumem formas únicas, autênticas. Mas, e a solidificação destas palavras em concreto - tema, individualiza, singulariza as idéias?
Tudo já foi dito, escrito, ou anunciado. A originalidade consiste no itinerário, no percurso a ser seguido, na forma como o desenvolvimento do pensamento primitivo é delineado. O enlevo altamente confessional de alguns literatos pormenoriza, torna perigoso e viciante o ato da escrita.
Não quero "parir" filhos ébrios e tortos, frutos que, apesar de adejar ao infinito, não possuem uma concepção vitalícia.
Não quero o fórceps como meio único para conceber idéias. O vômito de desespero mudo não mais me interessa. Quero a vivacidade audível da luta. A disciplina do ourives, a simples e inata forma e ação do pensamento lúcido.
Volto a Crime e Castigo. Uma pausa para as larvas vulcânicas que se assomam ao meu cérebro.
A morte de Catiérina Ivanóvna . A poça de sangue brutalmente expelida do peito tísico. As exéquias, o cortejo fúnebre. O sofrimento dos órfãos. Antes, a loucura megalomaníaca da pobre doente, o desfile de atrocidades nas ruas da cidade , o pobre Lênia, em prantos, a sua irmãzinha a agarrar - lhe as mãos, com medo da multidão. Os risos dos transeuntes diante da loucura mórbida de Catiérina.
Por que razão imprópria e maligna , a compleição, o riso amargo, diante da miséria alheia? O que nos faz tão inumanos diante do sofrimento do outro? Talvez a falsa e ardil sensação de bem estar inigualável , sensação de conforto e intocabilidade diante dos males que assombram a terra.
Não, é por matéria podre , por constituição conspurcada, por sordidez humana, que rimos do outro, que nos satisfazemos com sua dor.
28 de outubro de 2007.
Mas este é mesmo um diário? Provisoriamente, apenas por inadptidão momentânea, pelo simples fato de ter me esquecido de escrever a lápis, em cadernos longos, com uma boa encadernação.
Acordo. Uma fadiga repulsiva. O calor traz consigo um mormaço abafado. Irritada, fracionada em todos os pontos secos do meu corpo, volto minha atenção ao livro. Preciso encerrar esta leitura, o quanto antes. Raskolnikov, sua inquietação contínua, os paroxismos da sua mente, as teias de aranha com que se enlaça, a maneira trágica com que se auto - sabota, como é direcinado rumo ao calvário dos justiça dos homens, tudo isso me apavora. Preciso saber qual será seu fim, o que irá restar de toda aquela angústia, daquele olhar desconfiado, a atormentar -se, e , em contra partida, atormentar a todos.
Raskolnikov me possue? Seus pensamentos me possuem? Ou por um simples condicionamento inconsciente me deixo ser absorbida por sua embriaguez de espírito?
A disposição interna dos meus desejos é não substancial. Mas ora, quem será capaz de ordenar os instintos e desejos dentro de si? Estar para nascer este prodígio da natureza!
Delírios;
Se ao nascermos e ao morrermos estamos em abismo escuro, o que nos faz acreditar que a vida é um presságio, um diapasão de luz, uma diáspora entre dois idênticos extremos?
Em curtas palavras; como desnaturar os mil naturais conflitos que constituem a herança da carne?
Meu roteiro. Ele me devolve o chão, materializa organicamente o misticismo - caótico que por hora polariza minha mente.
Escreverei sobre putas. Putas gordas, a expressão humana em sua face mais crua e humilhante. Putas feias, sujas, pressionando seus dedos secos contra a intimidade de homens tísicos, homens com trajes pobres, homens doentes, verdes.
Por acaso Salvador não se assemelha á alguma cidade cubana, ou mesmo ao Haiti? O cheiro acre de peixe que exala das costas, os zumbidos irritantes que se aglomeram nas calçadas da orla, a vida resumida a um suspiro abafado, anulada pelas perdas granaláveis de frescor original.
A vida pulsa nesta cidade? O peito ainda pulsa nestes escombros fétidos? E estes corpos descartáveis, neste frenesi descontrolado?
Ah, existe magia em tudo isso . Mas enquanto a dialética sombria do meu pensamento persistir em não ceder espaço a vida gigantesca que brota em mim, continuarei cega.
Preciso voltar a Crime e Castigo.

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