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Monday, June 30, 2008

O sangue é a linguagem do amor




Seu desejo era o silêncio. O silêncio intercalado entre o mistério e o vazio.

Durante horas permaneceu calada, dominada por um êxtase velado e pelos liames de uma profunda ligação amorosa, onde omitia o concreto, e sublinhava as entrelinhas do sublime.

A redoma de silêncio é despedaçada.

O lustre vermelho e a máquina de escrever sobre a escrivaninha do quarto imprimiam luz e sonoridade ao ambiente cinzento, onde sua face pálida assumia expressões fleumáticas.
Estilhaços de vidro mesclam-se as palavras agridoces que brotam da máquina.

O desejo inviolável oscila entre o real e o imaginário.

Manhã de sábado.

Não conseguia manter um vínculo real com as ruas, onde corpos chamuscados por um prazer descartável percorriam aflitos pequenos espaços nas areias das praias, onde todos pareciam à mercê do vermelho-paixão, da troca de fluídos, da satisfação primária dos desejos carnais. Ela estava sozinha, perdida entre pontes do sofrer sufocado, e reticências da volúpia impetrante.

A presença do Outro era vital, atormentava sua libido, incorporava vida a via crucis do seu corpo tímido, inoculando doses de veneno prostituído às escrituras íntimas do seu corpo em chamas.

O Outro aparece sob as vestes de um “Dom Ruan de saias”, provocando uma visível distorção de gestos, e disritmia de sensações, desfazendo sua expressão fleumática, reacendendo sua vontade de interseção carnal
Um beijo no espelho. A simbiose entre as duas mulheres unia identidades e insanidades.

Debruçada sobre a janela, contempla uma pena que suavemente desliza entre as folhas secas das árvores. Seu corpo não mais lhe pertencia, era propriedade exclusiva do Outro. Seus pensamentos foram suprimidos pelo desejo de exceder os limites da experiência possível.

Um cigarro aceso e um olhar traiçoeiro. Ela se esquiva sobre o leito, e o Outro mostra indícios de que irá desenhá-la.

Uma folha em branco, alguns rabiscos. O desenho logo é descartado, e Ele beija seu rosto subtraindo sua alma através de movimentos circulares, onde o êxtase atinge seu ponto nevrálgico quando “perfura” sua boca.

Duelo de titãs. O sol desacelera a chegada da noite. Linhas quentes invadem a sala. Ela prefere eternizar o milagre da transcendência entorpecida pelo calor da noite.

No quarto, onde luzes apagadas e velas acesas abrasavam os corpos, dominados por um ritual pagão, intercaladas por uma volúpia gritante, ela pede ao Outro que perfure sua vagina com um objeto cortante.

Absorvida por um olhar distante, entrecruzado pela loucura intocável da alma, nas mãos um tubo metálico, suplica ao Outro que a faça gemer de prazer.

O sangue vermelho contrasta sua pele alva, escorrendo por entre as pernas.

Nascem rosas do seu útero.

Catatônico, o Outro observa em seu rosto uma inebriante sensação de alívio.

Chorando copiosamente, suplica para que faça o sangue estancar.

Sem nenhum traço de remorso, e indiferente à dor, ela enfatiza que o sangue é a linguagem do amor.

O quarto paraíso


A cidadezinha do pequeno vilarejo era dominada por casas com telhados angulares, onde burgueses tranqüilos contemplavam a paisagem campestre, realçada por árvores caudalosas, e cedros que imprimiam ao ambiente as digitais da melancolia e do desespero.

Marta, entre ruídos abafados de idéias e pensamentos secretos, atribuía uma forte tensão à sua própria vida, denunciada pela disritmia das suas ações e seus delírios recorrentes.

Sua íris azul revelava um notável destemor, tonificada por uma loucura camuflada, visível apenas em pequenos gestos, pois suas atitudes eram pautadas por uma frívola e articulada discrição.

Era dona de longos diários. Escrevia para se sentir viva, para se libertar do ócio e da solidão criativa, embora preferisse ser apenas aceita.

Seus textos eram fortes, suas idéias eram permeadas por uma mutação corrosiva, revelavam a precariedade da existência, denunciava o nomadismo da consciência, as agonias do ser, a vontade inquebrantável da desagregação, como se cada palavra escondesse a certeza secreta de um ritmo de feitiçaria, como se, de cada linha, retirasse uma gota de sangue negro.

Amordaçada em seu quarto, porém em uma liberdade de sentidos que lhe fascinava o espírito, inclinava o pensamento para um universo distante, que ela costumava chamar “o quarto paraíso”.

Santos de barro, a voz de Mário Lanza, um silêncio leve e cinzento, linhas luminosas secas e velozes.

Abria uma vala, Heloísa entrava.

O quarto paraíso parecia completo.

Mas precisava morrer para ter uma resposta. Precisava da morte para sentir a frescura morna da terra, e o cheiro das plantas. Precisava mergulhar na escuridão para apreciar a noite.

Voltou-se ao banco onde Heloísa, sentada, mergulhava os olhos sonolentos no chão. Ela jamais a desapontava. Juntas, pressentiam que precisavam arquitetar um plano ameaçador.

Subitamente os olhos castanhos de Heloísa pressentiram a morbidez de Marta. Atenta a cada palavra, riu alto com veemência, acenando com um sonoro sim para a expressão atormentada da amiga, que revelava uma vontade apressada, um desejo incontrolável.

Desaparecer, este era o plano.