Friday, August 13, 2010
Abaixei os olhos e vi os dois esparadrapos cor da pele, grudados em forma de cruz na barriga da minha perna direita. Tranquei a porta do banheiro, deixei a pia encher de água morna e peguei uma gilete.
Quando perguntaram a um velho filósofo romano como gostaria de morrer, ele disse que cortaria as veias durante um banho morno. Pensei que deveria ser fácil, deitada na banheira e vendo a vermelhidão da flor dos meus pulsos correr pela água clara, até que eu mergulhasse numa espécie colorida de papoula.
Mas quando chegou a hora a pele do meu pulso parecia tão branca e indefesa que não conseguia fazer. Era como se eu não conseguisse matar uma coisa que não estivesse sob aquela pele , nem no pulso fino e azulado que latejava sob meu polegar – estava em outro lugar, mais fundo, mais secreto e muito mais difícil de chegar.
Era necessário proceder em duas etapas. Um pulso, depois o outro. Três etapas, se considerasse trocar a lâmina de uma mão para outra. A seguir eu entrava na banheira e deitava.
Fiquei de frente para o armário de remédios. Se olhasse para o espelho na hora em que estivesse fazendo, seria como outra pessoa , num livro ou numa peça de teatro. Mas a pessoa no espelho estava paralisada e idiota demais
Deveria ficar tão animada como a maioria das garotas, mas não conseguia. Eu me sentia imóvel e oca como o olho de um furacão, se agitando estupidamente no meio daquele enorme tumulto. A poeira seca, cheia de fuligem, entrava nos meus olhos e descia por minha garganta. As ruas abafadas pareciam vibrar ao sol, e as capotas dos carros tostavam, brilhando de tão quentes. Eu me sentia um ônibus insensível e embrutecido.
Me sentia feia como a necessidade.
Fico com tanta inveja que perco a fala quando vejo a Betsy. Nunca tinha visto uma garota como a Betsy. Tinha olhos azuis como bolas de gude transparentes, praticamente indestrutíveis, e uma boca que parecia mostrar um eterno sorriso de desprezo. Não quero dizer um desprezo grosseiro, mas um divertido e misterioso desprezo, como se todas as pessoas ao redor fossem muito bobas e ela pudesse rir delas se quisesse.
Finalmente chegamos a festa da Mary. Eu estava com um vestido preto que custara quarenta dólares. O vestido tinha um corte estranho que não dava para usar nenhum tipo de sutiã, mas isso não era muito importante, já que eu era magra como um menino, quase não tinha curvas e gostava de me sentir meio nua nas noites quentes de verão. Fiquei nervosa por causa do vestido e da minha cor estranha, mas, como a Betsy estava por perto, esqueci tudo. Achei que estava esperta e cínica como nunca.
O bar estava tão escuro que eu quase só enxergava a Betsy. Com seu cabelo e vestidos brancos ela estava tão alva que parecia de prata. Achei que refletia os néons do bar. Eu me sentia misturada com as sombras, como o negativo de uma pessoa que eu nunca tinha visto.
Acho que vou tomar um uísque – disse Betsy.
Sempre me confundo na hora de pedir um drinque. Não sabia a diferença entre uísque e gim e jamais conseguia pedir uma coisa que gostasse.
Quero uma vodca – disse eu.
Betsy me olhou mais de perto.
Vodca com o que?
Pura. Sempre tomo pura – garanti.
( Seria ótimo se um dia eu pedisse um drinque e gostasse do sabor)
Eu gostava de olhar pessoas em situações difíceis. Se havia um acidente na estrada ou uma briga na rua, ou um feto num vidro de laboratório para ver, eu parava e olhava tanto que nunca mais esquecia. Claro que aquele homem de azul sozinho no balcão me chamou a atenção. Se há alguma coisa que não agüento é homem de azul. Pode está de preto, cinza, ou até marrom. Mas azul me faz rir.
Comecei a achar que, afinal, vodca era o meu drinque. Não tinha gosto de nada, mas ia direto ao estômago como a espada de um engolidor de espadas e fazia com que me sentisse forte e poderosa.
Betsy e um carinha se aproximaram e começaram a dançar. É meio deprimente olhar duas pessoas que estão cada vez mais interessadas uma na outra, principalmente se só você está sobrando na sala. Pensei em pegar um táxi. Estava farta daquele lugar cheio de guimbas de cigarro e guardanapos amassados. Fui de mansinho até o elevador e apertei o botão do meu andar. As portas fecharam como um acordeão silencioso. Depois minhas orelhas ficaram estranhas e notei uma enorme cara com olhos manchados e apertados como os de uma chinesa me olhando, idiota. Era eu mesma, claro. Fiquei pasma de ver no espelho como minha cara estava amassada e gasta.