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Monday, May 05, 2008

Chagas de um fim de noite

Olívia, branca como uma pluma, olhos negros, cabelos longos e retos, é dona de uma inteligência sensitiva brilhante, para os amigos uma escritora nata.

A sua aptidão para contos é notável.

Nas mesas de bares, entre parceiros substituíveis, costuma citar Proust, diz já ter lido “Os signos”, e também Kafka, afirma enfática, que já leu tudo sobre o homem dos subterrâneos.

Contagia a todos com seu humor ácido, sua descrença, sua paixão por Dostoievski, seu entusiasmo com suas obras. É incrível como a cada leitura do russo descobre uma nova certeza, dissonante do universo sistemático no qual se aprofundara durante dois anos, o escritório de advocacia na Avenida Carlos Lacerda.

Olívia, movida por uma necessidade latente de dilaceramento com o universo que tanto despreza; a fumaça de caminhões, o óleo derramado sobre as calçadas, memorandos, processos, ofícios, mendigos dizendo Jesus te abençoe, busca inspiração em um universo mortuário.

Olhando o céu de um ambiente fúnebre, percorre a abóbada esquadrinhando cada um dos seus corpos celestes. Vislumbrada com a penumbra, percebe que o infinito recai sobre nós como uma sentença de vida eterna. As nuvens parecem inundá-la de certo ardor da víscera oca, enfatizando misticamente suas estranhas liturgias.

Instintivamente, ela sente a lua estreitar laços de afetividade. Tem um suspiro profundo, quase salutar.

Atônita, percorre os corredores do cemitério olhando sempre em direção unívoca, o céu e toda sua amplitude, seus mistérios indizíveis e pornográficos.

Pinturas de Bacon, pensamentos persecutórios, imagens sinistras e obscuras. No céu visualiza demônios e anjos crucificados.

As flores matizam o tempo com um odor lilás. O vento forte e as folhas secas pendem das árvores que ilustram a paisagem do cemitério.

Desesperada, fotografa cada lápide, e se sente aprisionada nos subterfúgios e obscuros guetos da mente.

Olívia tem um surto psicótico.

Teria finalmente se libertado do calabouço psicológico criado por anos de solidão? Seria aquele cenário fictício?

Os limites entre a realidade e os delírios de uma mente psicótica teriam se entrelaçado.

Era fato, não conseguia mais discernir entre a razão e a loucura.

Volta para casa. Novamente, Olívia está mergulhada em seu esgoto imundo, a sua casa, um emaranhado de livros de filosofia, comida podre, seringas e latas de bebida, trazidas ou não por amantes eventuais.

Recorre à morfina. Sente uma forte pulsação, uma sensação de prazer que só a química lhe proporciona.

Olívia, a genial estudante de filosofia, a amante das artes, o sonho de consumo dos garotos do meio oeste, ávidos por minutos da sua preciosa atenção, não sabe se terá forças para resistir em meio a seus delírios, seus pensamentos díspares.

Visualiza com a clareza de um vidente seu início costurado ao fim, agonizando, com as pálpebras frias e escurecidas, em meio a mausoléus de escuridão e tristeza.

Mergulhada em sua própria loucura, ao som de She`s lost Control, do Ian Curtis, olha fixamente o relógio. São 04h48. Raios de sol penetram a janela do seu quarto. A escuridão se despede de Olívia, ela se sente traída.

Atormentada, se mostra indiferente ao próprio corpo, perfurando as veias com uma navalha.

O sangue brota ininterruptamente. O vermelho contrasta com sua pele branca, e rapidamente uma enorme poça se forma no quarto.

Sozinha, sente a vida em uma inevitável despedida. Porém, esboça um cálido sorriso. A morte a ampara em seus braços, e juntas, elas se distanciam aos dissabores a que Olívia fora submetida. Embarcam em um mal de azul anil e resplandecente.



















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