A cidadezinha do pequeno vilarejo era dominada por casas com telhados angulares, onde burgueses tranqüilos contemplavam a paisagem campestre, realçada por árvores caudalosas, e cedros que imprimiam ao ambiente as digitais da melancolia e do desespero.
Marta, entre ruídos abafados de idéias e pensamentos secretos, atribuía uma forte tensão à sua própria vida, denunciada pela disritmia das suas ações e seus delírios recorrentes.
Sua íris azul revelava um notável destemor, tonificada por uma loucura camuflada, visível apenas em pequenos gestos, pois suas atitudes eram pautadas por uma frívola e articulada discrição.
Era dona de longos diários. Escrevia para se sentir viva, para se libertar do ócio e da solidão criativa, embora preferisse ser apenas aceita.
Seus textos eram fortes, suas idéias eram permeadas por uma mutação corrosiva, revelavam a precariedade da existência, denunciava o nomadismo da consciência, as agonias do ser, a vontade inquebrantável da desagregação, como se cada palavra escondesse a certeza secreta de um ritmo de feitiçaria, como se, de cada linha, retirasse uma gota de sangue negro.
Amordaçada em seu quarto, porém em uma liberdade de sentidos que lhe fascinava o espírito, inclinava o pensamento para um universo distante, que ela costumava chamar “o quarto paraíso”.
Santos de barro, a voz de Mário Lanza, um silêncio leve e cinzento, linhas luminosas secas e velozes.
Abria uma vala, Heloísa entrava.
O quarto paraíso parecia completo.
Mas precisava morrer para ter uma resposta. Precisava da morte para sentir a frescura morna da terra, e o cheiro das plantas. Precisava mergulhar na escuridão para apreciar a noite.
Voltou-se ao banco onde Heloísa, sentada, mergulhava os olhos sonolentos no chão. Ela jamais a desapontava. Juntas, pressentiam que precisavam arquitetar um plano ameaçador.
Subitamente os olhos castanhos de Heloísa pressentiram a morbidez de Marta. Atenta a cada palavra, riu alto com veemência, acenando com um sonoro sim para a expressão atormentada da amiga, que revelava uma vontade apressada, um desejo incontrolável.
Desaparecer, este era o plano.
Monday, June 30, 2008
O quarto paraíso
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